Reflexão

A FÉ NÃO CONSISTE NA IGNORÂNCIA, MAS NO CONHECIMENTO.
João Calvino

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Trecho de A GUERRA DO FIM DO MUNDO



Nascido em 1936, na cidade peruana de Arequipa, o escritor Mário Vargas Llosa escreveu, em 1981, um romance cujo tema central é a Guerra de Canudos, travada no interior da Bahia. A obra se intitula A guerra do fim do mundo, de onde foi extraído o trecho a seguir.

Frei João Evangelista ficou em Canudos uma semana, acompanhado por dois outros sacerdotes, um capuchinho da Bahia e o pároco de um povoado vizinho de Canudos, um tal de dom Joaquim [...]. Em Canudos, viram uma multidão de seres esquálidos, cadavéricos, amontoados em cabanas de barro 
e palha, e armados até os dentes “para proteger o Conselheiro, que as autoridades tinham tentado matar antes”. Ressoam ainda em meus ouvidos as palavras apavoradas do capuchinho recordando a 
impressão que sentiu ao ver tantas armas. “Não as abandonam nem para comer nem para rezar, exibem-se orgulhosos com seus trabucos, carabinas, pistolas, facas, cartucheiras no cinturão, como se estivessem a ponto de começar uma guerra.” [...] O monge, apesar de suas correrias missioneiras 
pelo interior, estranhou essas mulheres descalças e esses homens antes tão discretos e respeitosos para 
com os enviados da Igreja e de Deus. “Estão irreconhecíveis. Há neles intranquilidade, exaltação. Falam aos gritos, arrebatam-se a palavra para afirmar as piores sandices que um cristão pode ouvir, doutrinas subversivas de ordem, da moral e da fé. Do tipo quem quer se salvar deve ir a Canudos porque o resto do mundo caiu nas mãos do Anticristo.” Sabeis a quem os jagunços chamam de o Anticristo? À República! Sim, companheiros, à República. Eles a consideram responsável por todos os males, alguns abstratos, sem dúvida, mas também pelos concretos e reais como a fome e os impostos. [...] Acreditando assustar-me ou me indignar, o capuchinho dizia coisas que são verdadeiras músicas para meus ouvidos: “São uma seita político-religiosa insubordinada contra o governo constitucional do país, formam um Estado dentro do Estado, pois lá não aceitam as leis, as autoridades não são reconhecidas nem o dinheiro da República é admitido”. Sua cegueira intelectual não lhe permitia compreender que esses irmãos, com instinto infalível, orientaram sua rebeldia para o inimigo nato da liberdade: o poder. E qual é o poder que os oprime, que lhes nega o direito à terra, à cultura, à igualdade? Não é, acaso, a República? E que estejam armados para combatê-la demonstra que acertaram também com o método, o único método que os explorados têm para romper os seus grilhões: a força.

VARGAS LLOSA, Mário. A guerra do fim do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p. 56-58.

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